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O debate a respeito da política nos últimos tempos alcançou um acirramento acima da média com a divulgação de que vários deputados votaram contra a indicação de seus partidos políticos na votação em primeiro turno da PEC 006/2019, a PEC da Reforma da Previdência. Particularmente chamou a atenção a atuação da Deputada Federal Tábata Amaral, do PDT (partido oposicionista), que despontava como uma das esperanças da chamada “Nova Política”.

Os opositores da Reforma da Previdência e a esquerda em geral passaram a criticar de forma contundente a jovem Deputada, enquanto os apoiadores da mesma Reforma e membros de partidos de centro e/ou de direita passaram a tecer elogios à sua postura ‘moderna’ e ‘independente’. A própria Tábata, em artigo publicado em sua coluna semanal na Folha de São Paulo (“A ousadia de ir além das amarras ideológicas”) utilizou o argumento da manutenção das convicções pessoais frente às diretrizes institucionais partidárias, alegando que “muitos partidos já não representam de fato a sociedade, mas somente alguns de seus nichos”.

O episódio envolvendo Tábata Amaral e outros jovens políticos “rebeldes” de partidos de esquerda – sobre o qual voltaremos a discutir de modo mais específico futuramente – suscita uma questão importante: o debate acerca da legitimidade da política de modo geral e dos partidos políticos em particular, tidos como exemplos da Velha Política ante a atuação autônoma e/ou independente de parlamentares e atores políticos (a Nova Política) que se veem como representantes de parcelas relevantes da sociedade que rejeitam a atuação dos partidos tradicionais, ou, mais ainda, das velhas formas de atuação político-partidária que organizam a cena política atual.
De certa forma, a questão analisada retoma o mesmo tema que, de tempos em tempos, emerge como um problema, ou seja, dos arranjos institucionais que parecem dificultar o acesso dos cidadãos ao campo político. Dito de outro modo, o confronto – e a legitimidade – entre o funcionamento das instituições e a atuação e autonomia política dos cidadãos.

A Constituição Brasileira de 1988 nos fornece as bases para a reflexão sobre essa aparente oposição. Comecemos, então, pelo final, ou seja, pela possibilidade da participação popular autônoma, descolada de instituições como os partidos políticos.

No Art. 1º, parágrafo único da Carta Magna, os constituintes fizeram constar que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. O primeiro ponto é que a relevante citação dá conta que os limites para o exercício da soberania popular estão estabelecidos pela própria Constituição. Neste sentido, há uma relação causal do texto citado com o Art. 14, que normatiza a participação individual dos cidadãos, que exercem, conjuntamente, a soberania popular, “pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”.

Sigamos. A perspectiva possível da qual partir é que o exercício do poder popular apresentado pela Constituição é a da Democracia Representativa, pois mesmas as opções possíveis fora da representação (Poder Legislativo) se dão na forma de provocação dos poderes legislativos (Câmara ou Senado), que podem submeter ao escrutínio direto do povo temas constitucionais ou administrativos já aprovados pelo Congresso (Referendo) ou em discussão (Plebiscito), acatados a partir da formação de maiorias, mesmo mecanismo dos sufrágios universais. Um exemplo para cada modalidade que podemos citar: o plebiscito realizado em 1993 em que a população foi instada a opinar sobre o modelo de Estado, optando pela República Presidencialista, e; o referendo sobre o comércio de armas de fogo, em 2005, em que foi rejeitada a proibição. Mas mesmo essas modalidades de consulta direta devem se submeter ao poder constituído e à representação legislativa.

A outra opção, ou seja, projetos de lei de iniciativa popular, tem cortes bem definidos de aceitação e tramitação, a começar pela exigência de que, no mínimo, 1% do eleitorado nacional subscrevam, tendo representatividade comprovada em, no mínimo, 5 estados.

A compreensão até aqui nos autoriza à primeira conclusão: o exercício institucional da cidadania política se dá a partir das instituições, nesse caso, da atuação do Partido Político. Este, como todas as demais instituições no e do Estado, adquire sua legitimidade na própria Constituição, tanto no Art. 17, que trata diretamente da normatização dos partidos, quanto em diversos outros pontos em que as diversas possibilidades de atuação política são relacionadas à atuação dos próprios partidos. Todos os poderes da República, de acordo com a Constituição, têm alguma relação com a política partidária. O Executivo e o Legislativo diretamente, pois os seus representantes precisam estar filiados a algum partido para serem eleitos, e o Judiciário indiretamente, na medida em que a cúpula de todos os tribunais, tanto superiores quanto regionais (federais) e estaduais, necessitam da indicação do respectivo Poder Executivo e a homologação pelo Poder Legislativo.

A constatação de que o centro da atuação política do Estado é a política partidária chama a atenção quando percebemos que os partidos, sistematicamente, são apontados como as instituições menos confiáveis para a população em geral, como mostrou uma pesquisa do Datafolha, publicada no jornal Folha de São Paulo em 10 de julho de 2019, em que o índice de confiança plena dos partidos políticos é de 4%, seguido de perto pelo legislativo, que não ultrapassou 7% de confiança plena.

A política partidária foi uma das formas dos constituintes dificultarem que outsiders assumissem o poder, como, também, que as leis e a própria Constituição fossem modificadas a partir da formação de maiorias ocasionais ou de instabilidade política. Atores políticos e militantes de grupos de interesse, para participar da cena política, devem se submeter às regras partidárias, negociando entre suas próprias convicções e as orientações e doutrinas do partido político. Devem se submeter sempre? Essa é outra questão.

Por:Júlio Cesar Meira,Doutor em História Social, professor do curso de História da UEG Morrinhos, do Mestrado em História da UEG e do Mestrado em Ambiente e Sociedade da UEG. Autor do livro Reformulação Urbana no Brasil do Século XX: Análise dos Discursos de Progresso e Modernização em um Município do Sul de Goiás (1950-1970). Contato: juliohistoriador@gmail.com.

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