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O ano de 2019 no Brasil tem continuado um processo de mudanças na legislação que afeta, diretamente, a totalidade dos cidadãos brasileiros. Desde 2017 foram alteradas as regras trabalhistas, o regime de gastos do Estado e, ainda em curso, as mudanças nas regras previdenciárias. Muitas outras mudanças – ou reformas – ainda estão por vir, como as previdenciárias estaduais e municipais e a tributária.

Não pretendo entrar no mérito da necessidade das reformas ou sobre a forma como as mesmas afetam a vida dos brasileiros, mas quero focar num debate que tem acompanhado todo o processo e que não tem chegado – ou interessado – a todos os brasileiros. A bem da verdade, afora os políticos diretamente envolvidos, apenas economistas, juristas e um ou outro cientista social ou político se interessam por ele; pois agora este historiador também vai dar sua opinião a respeito.

Mas vamos ao tema desse debate periférico. Todas as reformas mencionadas acima têm em comum o fato de modificarem tópicos ou artigos da Constituição brasileira, portanto, precisam de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), o que exige que três quintos (ou 60%) dos deputados a aprovem; ocorrendo a mesma coisa no Senado. Para se ter uma ideia, na mudança de regras infraconstitucionais, ou seja, que não precisam de PECs, apenas projetos de lei, basta uma maioria simples (50% mais 1) nas duas casas.

Pois bem. Os diretamente interessados no processo têm debatido a respeito da necessidade de nossa Constituição ser tão minuciosa e abrangente; argumentam que isso dificulta que, em caso de necessidade, as regras possam ser mudadas, dificultando a retomada do crescimento e da dinâmica da economia. Um parêntese que pode ser feito é que, passados alguns anos da reforma trabalhista e da criação do teto de gastos, a prometida recuperação não aconteceu; a bola da vez é a reforma previdenciária, que embicará o país rumo ao crescimento tão logo seja concluída.
Retornemos. É bom para a sociedade brasileira que as regras que organizam a vida social e econômica sejam desconstitucionalizadas?

Como é um artigo de opinião, eu já antecipo que a minha posição é que não é bom e, em seguida, passo a argumentar nesse sentido.
Em primeiro lugar, a ideia de República Democrática, no Brasil, é relativamente recente, na comparação com outros países do campo democrático, além de ser intermitente, hajam vistas os momentos de ruptura constitucional e democrática desde o início da República. A República dos Generais (das Espadas), o período Vargas, a Ditadura Civil-Militar implantada com o Golpe de 1964. Dos 130 anos de República, cerca de 46 anos foram de ruptura da democracia e, como sabemos, apesar das opiniões contrárias, o rompimento democrático nunca amplia direitos, bem ao contrário.

Essa realidade de nossa história fez com que, na constituinte de 1986-1988, que nos legou a Constituição atual, muito do ordenamento jurídico que regula a vida social e econômica fosse colocado como artigos constitucionais; mais: foi criado, no Artigo 60, parágrafo 4º, a figura das Cláusulas Pétreas, que não podem ser mudadas nem com Emendas Constitucionais, como os direitos e garantias individuais, por exemplo (que são listados no Art. 6º). A intenção do constituinte era dificultar o máximo que maiorias ocasionais ou rupturas democráticas facilitassem o esgarçamento do tecido político-social, através de mudanças abruptas.

Poderíamos argumentar que, passados mais de 30 anos da vigência da Constituição, com um pouco mais de tempo de democracia, depois do último período ditatorial, estaríamos prontos para um novo pacto institucional que facilitasse a mudança das regras.

Minha opinião é que não estamos prontos para isso, e aqui vai o segundo ponto a ser tratado neste texto. Os acontecimentos dos últimos anos demonstram que a institucionalidade política e jurídica ainda não é uma construção acabada no Brasil; ao contrário, os fatos mostram os atores políticos e jurídicos num confronto direto que deixou, como rescaldo, uma fragilidade institucional ainda maior, a ponto de muitos vocalizarem o desejo da volta da ditadura.

Como pano de fundo, dois pontos: a forma como a política é financiada e o modelo do voto proporcional para o parlamento, que, no final das contas, não estabelece uma relação entre o eleito e o eleitor, nem consegue organizar – e mobilizar – de maneira satisfatória grupos e temas em prol de pautas que não sejam majoritárias, apesar de fundamentais. Como exemplo, maiorias sociais conservadoras não veem relevância em pautas identitárias ou ambientais, por exemplo. Nesse sentido, são poucos

os candidatos que conseguem se eleger abordando esses temas como prioridade em suas campanhas.
Para concluir, é fundamental que as instituições políticas brasileiras atinjam um grau de amadurecimento que permita a construção de um modelo político que proporcione maior contato – e vigilância – do eleitor sobre seus representantes; ao mesmo tempo, que permita que temas que são fundamentais, embora não encampados pela maioria da sociedade, possam ser debatidos e protegidos da vontade das maiorias parlamentares ocasionais. Enquanto isso não acontecer, é fundamental a constitucionalização da vida social e econômica, garantindo maior proteção aos que não tem o poder de influência no parlamento. Se ainda assim está difícil, imaginem sem esse muro de contenção.

Por:Júlio Cesar Meira, Doutor em História Social, professor do curso de História da UEG Morrinhos, do Mestrado em História da UEG e do Mestrado em Ambiente e Sociedade da UEG. Autor do livro Reformulação Urbana no Brasil do Século XX: Análise dos Discursos de Progresso e Modernização em um Município do Sul de Goiás (1950-1970). Contato: juliohistoriador@gmail.com.

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